Uma Aventura com o Dr. Mário Soares
Texto: Vasco Pulido Valente
1. No princípio de Janeiro de 1985 e estávamos em pleno «Bloco Central», quando pedi ao dr. Mário Soares que me respondesse a um questionário académico sobre o papel do Primeiro-Ministro. Não lhe falava desde 1979. Ele não tinha apreciado a Aliança Democrática e proclamara, em círculos indiscretos, que me achava «telhudo». Para meu espanto, ele disse que sim e, no encontro, foi extravagantemente amável. À saída, chegou mesmo ao excesso e requinte de ir comigo ao elevador do 2° andar de S. Bento e de me oferecer os seus inestimáveis serviços. Estas vénias, eram tanto mais prodigiosas, quanto ele não ignorava que o «telhudo» escrevia semanalmente sobre ele no Diário de Notícias, coisas celeradas e pérfidas, com o objectivo confesso de o remover de Primeiro-Ministro. Houve outros sinais: um sorriso cúmplice do dr. Almeida Santos que me inquietou; um beijinho público da dra. Maria de Jesus, que me sobressaltou; abraços efusivos de obscuros amigos da família, que me atrapalharam; a remessa de livros com efusivas dedicatórias; e meia dúzia de jantares sem objecto. Admito que à época, sendo muito ténue a minha percepção da realidade exterior, não dei por eles. Ou, pelo menos, não lhes atribuí especial importância. Tirando o estrito e trôpego cumprimento das minhas obrigações na Universidade Católica e no ICS, passava os dias e as noites na cama a embeber o espírito em espíritos e a reler a obra completa de Ludlum. Só quando António Barreto voltou de um retiro sabático, o caso se esclareceu. O dr. Mário Soares desejava que a minha ornamental pessoa apoiasse a sua candidatura à Presidência da Republica. António Barreto não forneceu pormenores sabre a natureza desse apoio e devo admitir que o assunto também não me interessou. A especialização em Ludlum não me parecia auspiciosa e achei genericamente que sair de casa, fosse para eleger o dr. Soares ou sr. Justerini Brooks, me fazia bem. Os trabalhos começaram em Fevereiro ou Março em S. Bento, e consistiam num jantar hebdomadário do presumível candidato com Vítor Constâncio, com Jaime Gama, com António Barreto e comigo, a que intermitentemente assistia um indivíduo denominado Gomes Mota. Nunca percebi as funções desta extraordinária «comissão que, por motivos fáceis de apreciar, e apesar de toda a evidência em contrário, não existia. Vítor Constâncio e Jaime Gama ocupavam preâmbulo com hiperbólicos elogios ao «Mário». Constâncio declarava o ultimo discurso do «Mário» em Aljustrel «magnífico» e, saltando na cadeira, Jaime Gama declarava «magnifico» o ultimo discurso do «Mário» em Aljustrel. Ou Gama declarava «genial» a ultima entrevista do «Mário» e Constâncio ponderadamente explicava que ninguém podia deixar de compreender a «genialidade» da ultima entrevista do «Mário». O «Mário» ouvia estas inanidades com deleite, em parte por elas próprias, em parte porque visivelmente apreciava a competição das duas crianças pelo seu favor. O sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros e o sr. Governador do Banco de Portugal, entretidos um com o outro, não se coibiam. Para nós, para mim e o António Barreto, eles eram o Dupont e o Dupond da lenda e o pretexto de grandes galhofas post-prandiais. Mas nem Dupont do banco, nem o Dupond do ministério se incomodavam com a situação. Em ambos luzia a astuciosa ideia de que em Belém, Soares não tencionava com certeza continuar secretário-geral do PS e ambos visivelmente imaginavam que o chefe os distinguia a bifes e batatas fritas com o secreto intuito de escolher um deles para lhe suceder. Nunca houve uma conversa útil nesses jantares. Houve especulações ociosas sabre os planos do general Eanes, sabre os presumíveis candidatos da Direita (Firmino Miguel, Lemos Ferreira, Freitas) e sabre as mirabolantes intrigas do PSD. Soares contava firmemente com os votos do PSD. O Dupont e o Dupond concordavam e Gomes Mota sibilava fragmentos de frases subtis sabre a Esquerda. Outra escola de pensamento, representada por Barreto e por mim, exprimia algumas duvidas sabre o amor do PSD ao candidato, cepticismo que o candidato tolerava com dificuldade e por mero respeito pela liberdade de expressão. Tinha um acordo leonino com Mota Pinto, segundo o qual o PSD se comprometia a sustentar o «Bloco Central» até 1987 e não lhe embaraçar as ambições a Belém. Entretanto, vinham a Lisboa «especialistas» alemães e americanos oferecer o benefício da sua experiência. Apareciam com zelo e desapareciam com angústia. Ninguém sabia quem era a oposição. Ninguém sabia se Mota Pinto se aguentava na presidência do PSD. Ninguém sabia se Eanes, invocando eventuais desordens no «Bloco Central», inteiramente prováveis, não acabava por dissolver a Assembleia da Republica. Ninguém sabia nada sobre coisa nenhuma. E Soares menos do que todos. De repente, em algumas semanas, caiu o tecto. Mota Pinto, humilhado num Conselho Nacional, abandonou o governo e, para o lugar dele, foi interinamente Rui Machete. Depois, Mota Pinto morreu. E o Congresso do PSD, marcado para a Figueira da Foz, ficou, por assim dizer, sem dona. Que chefe iria produzir aquela desvairada congregação? O enérgico Salgueiro? O coleante Marcello? Pior ainda? Em S. Bento, o candidato berrava como um possesso. Numa tarde qualquer de Maio, recebi um recado para comparecer urgentemente no futuro «espaço Valbom», um prédio em carcaça com meia dúzia de quartos alcatifados. Lá dentro, rodeado por uma corte fúnebre, Soares tentava não aliviar a raiva, partindo cadeiras na cabeça dos dignitários. Logo que entrei mandou calar a canzoada. Precisava de me fazer uma pergunta, uma pergunta fatídica: «Quem é esse Cavaco?». Pulidamente, inquiri a razão do interesse. A minha vida, oscilando entre a baixa literatura e um alto sentimento, não me permitia seguir com minúcia as peripécias da política partidária. Soares respondeu, atirando-me um jornal por cima da mesa. O jornal informava o público que o Prof. Cavaco Silva fora eleito presidente do PSD. Coube-me, pois, a honra de ser o primeiro a instruir o dr. Mário Soares sobre a natureza da criatura. Registo o profético sumo das minhas palavras: «Não se aproxime dele, não lhe fale, não lhe toque. Não se convença que negoceia com ele. Ele não gosta de negócios, só gosta de contas, e desconfia de si (para pôr as coisas com brandura). Demita-se imediatamente. Informe o país que se fartou das loucuras do PSD e que o PSD quer subverter a ordem e matar os portugueses à fome. Exija eleições. Mas não se meta com o homem». O candidato sorriu com estes exageros. Pretendia que Eanes não dissolvesse a Assembleia da República e, depois de 15 de Julho, Eanes ficava constitucionalmente impedido de a dissolver. Cavaco («É Cavaco que ele se chama, não é?») percebia com certeza as óbvias vantagens de evitar o «eanismo» Ou não? Por cinco ou seis semanas, que diabo? Ou não? Asseverei-lhe que não, contemplando a capa dos «Pára-quedas e beijos»., de Erica de Jong, adquirido pouco antes numa tabacaria. Ele não se convenceu. Quase no fim dos «Pára-quedas e beijos», o telejornal mostrou o dr. Mário Soares recebendo na sede do PS o Prof. Cavaco Silva. Os jantares de S. Bento foram definitivamente interrompidos e as conferências no «espaço Valbom» também. O Prof. Cavaco levou dez dias a desfazer o «Bloco Central» e o general Eanes mais cinco ou seis a desfazer a Assembleia. Marcaram-se eleições para Outubro e a Fundação Gulbenkian deu-me um subsídio para passar três meses em Oxford. O candidato sem dúvida ruminava vinganças em Nafarros. Descansei. Mas, na véspera de me ir embora, através de uns «serviços» anónimos o dr. Mário Soares mandou-me de novo apresentar no «espaço Valbom», «espaço» esse em que por um triz não caí do quarto andar pelo buraco do elevador. Na sala para onde me levaram, algumas notabilidades do PS cochichavam em pequenos grupos. Escondi-me atrás de António Barreto e, com serenidade, esperei os acontecimentos. Passados dez minutos, o candidato, seguido pela sombra submissa do dr. Almeida Santos, abriu a porta e designando a assistência com um dedo irritado, anunciou: «Vocês são todos da minha comissão politica». Estabelecido isto e extintos os murmúrios de gozo, começou benevolentemente a expor os seus planos. A essência desses planos era que ele tinha resolvido dedicar-se sem reservas a sua candidatura. Isto pareceu animar de sobremaneira um considerável número dos presentes. Houve mais murmúrios de gozo, sorrisos e meneios aprovadores. Por insondáveis caminhos, a salvação chegara. Chegara, todavia, sob a forma equívoca do dr. Almeida Santos. Como o candidato, se apressou a elucidar os hereges, cabia a essa formidável figura, e seu querido amigo, substituí-lo no partido e no governo, enquanto ele tratava de se alçar a Belém. A gente do PS, já obviamente informada desta extraordinária escolha, não exibiu surpresa. Reparei então na ausência gritante dos gémeos Dupont e Dupond, cujo nariz não se tornou a ver durante a campanha. E reparei também na aura de glória e modéstia que descera sobre o crânio pontiagudo do eleito e na solicitude com que o sindicalista Torres Couto lhe servia um copo de água. Foi um momento de grande emoção. Almeida Santos bebeu um golo de água, aconchegou a sua fulgurante gravata ao peito e dirigiu-se gravemente aos «comissionados». Ele, Almeida Santos, aceitara sacrificar-se pelo «Mário» e pelo partido. Não ocultava, no entanto, o seu embaraço. Tomava a responsabilidade de conduzir o PS às eleições legislativas, mas, se as ganhasse, quem de facto as ganhava era o «Mário», ao passo que, se as perdesse, as perderia sozinho. Numa palavra, ele, ele próprio, perderia sempre. O tom em que revelou este doloroso dilema, subentendia uma sábia resignação à injustiça humana e o estóico desejo de ajudar «o Mário». Considerando o episódio encerrado, «o Mário» mudou prestamente de assunto. As coisas estavam um bocado complicadas, admitiu. «Tinha-lhe morrido o Mota Pinto» e, agora, à Direita, aparecia o Freitas (em vez de um general) e «esse Cavaco», que apoiava o Freitas. Os comunistas, claro, não contavam. Por conseguinte, ele precisava do eleitorado do «centro». Ou seja, o PS precisava de atrair para uso posterior o eleitorado do «centro», com uma campanha moderada e um bom resultado nas legislativas. Quanto ao PSD, ele conhecia o peso: era quase tudo também gente do «centro», gente moderada, que detestava o CDS e o Freitas. Apesar de Cavaco, aliás uma aberração temporária, o PSD votaria nele. Em resumo, a soma era simples: 32 ou 33 por cento do PS mais 22 ou 23 por cento do PSD igual a 55 ou 56 por cento à primeira volta. A «comissão», maravilhada com a subtileza do candidato e a luminosa argúcia dos seus cálculos, sobrou num silêncio reverente. António Barreto, gelado de espanto, examinava o infinito. O meu avião partia para Inglaterra dali a umas horas. Pus o braço no ar. O candidato resignou-se a ouvir as minhas desconcertadas opiniões. Ofereci duas. A de que, tirando talvez o dr. Rui Machete, não existiam PSD's, «moderados» ou «do centro»; e a de que o dr. Almeida Santos, sendo uma patente emanação do dr. Mário Soares, não podia nem ganhar nem perder eleições. Sobretudo, ao contrário do que ele supunha, não as podia perder. O candidato não se comoveu. Agarrou num molho de papelada, levantou-se e disse vagamente na minha direcção: «Isso é o que você pensa». Depois deste irrespondível argumento não valia a pena continuar o debate e a assembleia desfez-se. Despedi-me de António Barreto à porta do «espaço Valbom», com muita pena dele e ainda mais pena de mim. Mas, não me lembro porquê, à noite decidi telefonar ao dr. Mário Soares para repetir o sermão e acrescentar que o dr. Almeida Santos, sem desprimor, representava para a generalidade dos portugueses o pior do PS. O dr. Mário Soares bufava. «Vai ser um desastre», avisei-o. «Não se rale», respondeu ele quase a estoirar, «se for, a culpa é minha».
2. No domingo, 6 de Outubro de 1985,o PS foi reduzido a metade pelo PRD. Terça-feira, o meu avião aterrou em Lisboa por volta das quarto da tarde e, às cinco em ponto, entrei com malas e sacos de plástico, contendo garrafas, na sede do MASP. A reunião da «comissão política», convocada na véspera, destinava-se a discutir «a conjuntura». O candidato ficou assaz surpreendido quando me viu aparecer e houve uma pequena comoção na assistência, que aliviou o seu estado de profundo estupor. Sentei-me ao lado de Alfredo Barroso que me resumiu eloquentemente a situação, mostrando o branco do olho. Do outro lado da mesa, António Barreto riu-se por debaixo das barbas. Em três meses e meio, a «comissão política» adquirira mais nove ou dez membros, entre os quais distintas inteligências como Manuel José Homem de Mello, Joaquim da Silva Pinto, Clara Junqueiro e «o nosso jovem», vulgo José Apolinário. A conversa consistia em uivos, lamúrias e frases protocolares de confiança. Pairava um ódio especial à «santinha da Ladeira», Manuela Eanes, e os espíritos sofisticados autorizavam-se algumas lucubrações sobre os propósitos dela e do marido. O candidato, de bochecha pendente, meditava ou berrava com os subordinados que entreabriam a porta, sussurrando coisas. Quando chegou a minha vez, pretendeu saber a opinião fresca de um viajante. «A culpa é sua», declarei com a máxima humildade. Isto surpreendeu-o e fê-lo arrebitar a orelha. Para ele, a culpa era manifestamente de Almeida Santos. «O senhor é que me disse», insisti muito melífluo. «Não se lembra? O senhor disse: você não se rale, se for um desastre, a culpa é minha». Aqui o candidato percebeu o pendor geral da conversa e acabou com ela: «As culpas não interessam. Não interessam nada. Se quer dar a sua opinião, dê. Mas não se ponha com essa história das culpas». Obedeci. Dali em diante, guardei as minhas opiniões para o Monte Carlo e para a Colombo, onde me consolava com vodka e com António Barreto (e, a seguir, com Alfredo Barroso e António-Pedro de Vasconcellos), enquanto as sondagens vagueavam entre os 8 e os 10 porcento. Introduziu-se, por essa altura, na cabeça do dr. Soares a extraordinária noção de que, estando os portugueses «zangados» com ele, o caso se resolvia se ele escrevesse aos portugueses uma carta simpática, aplicando-lhes metaforicamente umas palmadas nas costas. E aplicou-as num artigo ilegível de duas ou três páginas, que saiu em letra pequena num semanário sem leitores. Desde aí achou-se reconciliado com a nação e genuinamente não compreendia por que obscuras razões ela se obstinava a rejeitá-lo. Com o aprazimento dos peritos e das notabilidades, mesmo depois de Zenha e Pintasilgo se candidatarem, não deixou de vigorar a ortodoxia do «centro». De acordo com a lunática lógica do candidato e dos seus amigos, a Esquerda votaria em Pintasilgo, a Direita votaria Freitas e o «centro» votaria Soares. Não ocorreu a ninguém que o «centro» talvez não existisse ou não excedesse os 8 a 10 por cento das sondagens. Tratava-se apenas de persistir, de meter a «mensagem» a bem ou a mal no cérebro, excessivamente mole ou excessivamente duro, do país. Cada vez mais furioso, o candidato persistia. Os papéis e os copos de água voavam pelo MASP. Os berros (e agora os insultos) não paravam. E os apelos ao «centro» também não. O dr.. Mário Soares, em excursões pelas beiras, proclamava-se socialista democrático ou social-democrata ou as duas coisas ou as que fossem necessárias e até um belo dia na Madeira revelou ao povo atónito a sua irresistível propensão para o «centro democrático e social», propriamente dito. Era PS, era PSD, era CDS. Era tudo. Era ele. O incidente da Madeira encheu-me as medidas, de resto já a transbordar de vodka ordinário, ingerido em doses fenomenais, a título de refri- gerio, no Monte Carlo. Preparei-me para o pior e, a meio de uma comissão política, garanti-lhe a pés juntos que a Direita o execrava. Esta pura verdade de 1985 exaltou-o. Com sua célebre delicadeza retorquiu que, nunca tendo sido colonialista, nunca sentira qualquer necessidade de bajular os pretos. Aludia assim discretamente ao facto da minha passagem pela Aliança Democrática e pelo governo de Sá Carneiro e qualificava de «bajulação» a minha defesa de uma candidatura de Esquerda. Não neguei os factos: nem os crimes cometidos com a Aliança Democrática e Sá Carneiro, nem o crime de «bajular» a Esquerda desde o princípio. Notei, no entanto, que o meu saber era de experiência feito: não se aprendia no PS que o PSD e o CDS o execravam, em compensação na Aliança Democrática aprendia-se logo. Apopléctico e pouco presidencial, o candidato apertava a mesa com as mãos. O ambiente não ficou particularmente recreativo. Vários patriotas juraram ao dr. Soares que a Direita o adorava e louvaram a sapiência da política do «centro». António Barreto e Jorge Sampaio, em termos civis, propuseram, como de costume, uma política de Esquerda. Clara Junqueiro falou do mar, da rosa dos ventos, do universo e de Portugal. Costumava falar muito destes assuntos. A sessão acabou com suavidade. Excepto no Monte Carlo, onde António Barreto substituiu o dr. Mário Soares como alvo das minhas gritarias. Não tinha evidentemente qualquer justificação para gritar a António Barreto. Mas tinha de gritar e não podia gritar ao outro. A vítima sofreu o alarido com paciência. Infelizmente, uma noite ao jantar confessou-me que o dr. Mário Soares lhe pedira para ele escrever um manifesto e cometeu o erro trágico de me pedir a mim que o ajudasse. Fui atrás dele pelo Saldanha fora, inquietando o público e a polícia. Que não escrevia manifestos para mentecaptos, nem para serem emendados por mentecaptos. Que só escrevia por dinheiro. Que, mesmo por dinheiro, não escrevia manifesto nenhum e mais aleivosias do género. Finalmente farto, Barreto enxotou-me e, largado como um cão no passeio do Monumental, extraí a consequência óbvia dos acontecimentos. Meti-me no carro e apontei o carro para Almansil, concelho de Loulé, Algarve. Em casa do meu amigo João Paulo Amorim come-se indecentemente bem e bebe-se melhor. O MASP e o dr. Soares diluíram-se em robalos grelhados e costeletas de borrego. Ate o consumo de literatura se aperfeiçoou. A beatitude não andava longe, quando um sábado, o telefone tocou. Estendido no sofá em frente da lareira e abastecido de vodka russo, não me importei. O dr. Soares com certeza não queria nada de mim. Queria: queria-me em Nafarros, domingo (com António Barreto), para almoçar. Ameacei que não ia. João Paulo Amorim, delegado do MASP nas paragens, não consentiu. Marcou-se o avião, às 8 da manhã, e ele acompanhou-me ao sacrifício às 7, num buggy aberto, pelo frio desumano de Novembro, depois de uma noite em branco em que se discutiram as virtudes teologais e se esgotaram as reservas de vodka. Em Nafarros, as minhas mãos tremiam e a colher batia com estrondo na tigela de caldo verde. António Barreto estava melancólico. O candidato exuberante e a dra. Maria de Jesus docemente sibilante. Após o repasto, os homens marcharam para o escritório do candidato e aí, entre fotografias autografadas dos donos deste mundo, o dr. Mário Soares declarou o manifesto de Barreto excelente e, ainda por cima, «muito bonito». Ele sempre pensara aquelas coisas e sempre defendera aquela política. Dito isto, combinaram-se alguns pormenores sem importância e distribuíram-se algumas tarefas. A dra. Maria de Jesus trouxe amavelmente café. O manifesto de Barreto condenava as ambiguidades do «centrismo» (e, por implicação, o «Bloco Central») e definia a candidatura de Soares como a candidatura da Esquerda contra a Direita. Na comissão política de segunda-feira, as minhas mãos já não tremiam. Tremiam de fúria as do dr. Almeida Santos. O candidato, no entanto, indicou a assembleia que tudo aquilo era fruto das suas meditações. De velhas meditações, aliás. Por exemplo, há meses que ele sentia a urgência de um sério aggiornamento do PS. As notabilidades aclamaram a nobreza e a oportunidade da ideia. O dr. Almeida Santos emagreceu dez quilos. E, como uma rapsódia da dra. Clara Junqueiro sobre as navegações lusitanas, a comissão política, para efeitos práticos faleceu. Durante o resto da campanha, nem uma nuvem perturbou o meu idílio com o dr. Mário Soares. Queríamos os dois a mesma coisa: ele queria ganhar e eu queria que ele ganhasse.
in K, 14 - Novembro de 1991
2005-11-09
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