2005-10-24

Voltei a rabiscar alguns textos para um livro que estou a escrever há alguns anos. Coloquei recentemente uma entrada (a verde) aqui no notaS. Refiro isto, pois não se trata de um comentário propriamente dito, mas de ficção, ou o que quiserem chamar. Não sei se alguma vez vou terminar. Se alguma vez o vou editar. Mas sei que vou continuar, pois nele tenho uma espécie de catarse. Liberto-me e prendo-me. Chama-se, para já e até aqui: Amor Radioactivo!

Aqui fica mais um texto:



Contextualizações sobre o fundo de um copo partido

São pequenas emoções, pedaços de nada que caem dentro do copo já vazio. Cheio da esperança que já não tenho. Olho com mais calma e reparo que está partido, estilhaçado no chão sujo onde estou. Mesmo assim, bebo, das esperanças, dos olhares, das vidas que nunca viverei, pensando nas que vivi. Esta é a realidade dos contextos. A saga da vida rodeada por velhos que me agoiram o passado, não me permitindo perceber que já não tenho futuro. Esse futuro que enterrei naquela garrafa que derrama sobre a sarjeta qualquer coisa que já terá sido vida, reflectindo agora a falta dela. Olho mais perto. Sangue. Cortei-me no copo. Cortei-me no lábio. Mas não é o meu sangue que escorre. Já não tenho um pingo dele no meu corpo. Já não sinto um pingo dela no meu corpo. Foi com a esperança. Reflicto tardiamente o que perdi, dos pequenos nadas a que não dei importância, dos laços de cor cada vez mais escuros e esfarrapados. Fico-me com tudo aquilo que tinha, mais aquilo que não terei. Fico sem saber se é a morte, agonia sem dor, que me persegue, se é a minha sombra, que cai, arrastando-me para baixo...

Preciso de acordar deste sonho sem dor, sem cor, desta falta de pudor, desta calçada fria que sinto esmagar o meu rosto, que comprime a minha vida no chão, em vão, na lama, por entre beatas mal fumadas e lixo da vida dos outros. Estou louco. Pedaços de esperança, bocados de alguma coisa, aguarela negra, pecados cinzentos de coisa nenhuma... mas permaneço agarrado à vida, não sei se por medo do que pode acontecer, se por raiva do que já não pode.

A razão dos bichos é mais forte que a dos homens. É pelo menos mais honesta, mais básica, também, mas acima de tudo, não fogem por fugir. Não dormem por dormir. Não matam por matar.

Percorro agora, neste fim anunciado, o caminho que me faz chegar aquele copo partido no chão. Aquele corpo partido. Afinal, o sangue é o teu, mais que meu. Desperdiçaste-te em mim, desperdicei-te sem mim. Vejo ainda reflexos do teu rosto. Daquele cancro que te levou. Daquela dor que uivou. Do caixão que carreguei, antes de dar comigo neste copo. Bem lá no fundo. Tenho que decidir agora se me levanto. Se tenho forças para viver o resto da minha existência a pensar no que poderia ter sido. O que teria sido?

Adormeço desesperadamente sem força. Fico caído até às primeiras horas do dia. Nem sei bem qual. De um qualquer. As pessoas passam por mim, preocupados nas suas vidas mesquinhas. Olham-me sujo no chão. Julgam-me. Julgam que o podem fazer. Já nada me importa. Alguém me estende a mão. Fria. Hesito. Mas vejo depois que a conheço. Recordo-me daquele toque. Não. Foi apenas a minha memória a pregar-me uma partida. Sei agora que estou de partida. Há sangue demais para voltar a trás. Fico para trás. Começo a deslizar pela rua, sinto ainda, antes da luz se apagar, o ruído surdo de uma ambulância, o rosto de alguém que me electrifica. Mas já não sinto. Felizmente a dor acabou, antes do último suspiro, ainda sinto uma réstia de luz que trespassa o vidro e me aquece a cara. Sorrio. Juro que ainda consegui ouvir o meu coração parar, aquele ruído que ensurdece cá dentro, que me reconforta. Texturas de uma vida. Contextos descontextualizados de uma ida. De uma ira.

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